Blockchain e o mercado imobiliário. O que temos de concreto.

Blockchain e o mercado imobiliário. O que temos de concreto.

Ago | 2018 – A tecnologia blockchain vem despertando a atenção de vários mercados e por uma razão muito simples: ela pode ser a grande inovação depois da internet. Mas para acatar ou não essa hipótese é fundamental compreender o conceito e como ela funciona.

Embora diretamente associada às criptomoedas, a blockchain tem um vasto campo de aplicação onde as moedas digitais são apenas um deles. Em tese, a blockchain, ou cadeia de blocos, funciona como um livro-razão público, aberto, compartilhado e distribuído onde as informações registradas são vinculadas e imutáveis, estabelecendo uma relação “trustless” (independente da confiança ou da validação de terceiros), segura e direta entre duas ou mais partes. Ou seja, em muitos casos (mas não em todos) a blockchain permite transações entre pessoas sem a necessidade de intermediários.

Pode parecer um conceito ambicioso mas o Bitcoin, com seus nove anos de existência, mais de 250 mil transações por dia e mais de 30 bilhões de dólares negociados por mês, é uma prova incontestável da robustez e confiabilidade dessa tecnologia. Isso sem contar que ao longo desses anos a blockchain do Bitcoin sofreu inúmeros ataques e tentativas de fraude, mostrando-se, no entanto, resiliente, incorruptível e confiável, consolidando uma reputação da qual muitos duvidavam.

Mas olhar de fora não vale. Entender como ela funciona é fundamental para respeitar a sua imponência. Existem vários sites, artigos e até cursos de pós-graduação sobre o assunto. No entanto, o site https://anders.com/blockchain/ é notável em sua capacidade didática, demonstrando facilmente como criar e minerar um bloco, como funciona o hash, o encadeamento e a vinculação desses blocos. Por meio do seu simulador fica fácil entender como é possível encriptar qualquer conteúdo (um texto, um documento, uma música, um valor ou um imóvel) e como ele fica imutável numa blockchain. A partir dessa compreensão, imaginar o arsenal de aplicações para o mercado imobiliário é uma consequência ululante.

Existem vários projetos e ideias para o mercado imobiliário, mas alguns chamam a atenção pelo consenso em torno das suas promessas:

• Universalização do título de propriedade. Depende de uma longa esteira legal mas pode proporcionar ampla transparência ao mercado, aumentando enormemente a sua liquidez.
• Tokenização dos imóveis transformando-os em ativos líquidos e permitindo o fracionamento da propriedade e a derivação em outros ativos.
• Com a tokenização do imóvel torna-se possível implantar os contratos inteligentes (autoexecutáveis) e ampliar o mercado de recebíveis de aluguéis.
• Crowdfunding (financiamento colaborativo) para incorporações ou refinanciamento de imóveis prontos.
• Tokenização dos imóveis para gameficar o processo de captação de imóveis – projeto em estudo pela Netimóveis.

Dubai Bloockchain StrategySão transformações estruturais profundas e por isso encontram fortes barreiras legais e comerciais. No entanto, frear esse avanço parece uma tarefa hercúlea para qualquer governo. Enquanto isso, o Dubai Land Department (DLD) anunciou a adoção da blockchain como banco de dados dos registros de imóveis e suas transações, incluindo os contratos de financiamentos e seus respectivos tributos e taxas. Tudo previsto para rodar até 2020. O projeto, chamado de “Dubai Blockchain Strategy” é conduzido pelo Xeique Hamdan Al Maktoum e faz parte do “Smart Dubai”, assentado sobre três pilares nada modestos:

1. Eficiência governamental: 100 milhões de documentos deixarão de ser impressos e circularão digitalmente pela blockchain economizando 25 milhões de horas no processamento desses documentos;

2. Estímulos à criação industrial: com o ambiente criado pela “Dubai Blockchain Strategy” milhares de empreendedores serão atraídos e estimulados a sediar suas indústrias e empresas, notadamente aquelas dos setores imobiliários, fin-techs, bancos, transportes e turismo.

3. Liderança internacional: o governo de Dubai anuncia que irá abrir sua plataforma blockchain para parceiros globais para aumentar a segurança e a conveniência para viajantes internacionais em Dubai. Com maior mobilidade e segurança, espera-se atrair novos empreendedores e investidores em busca de um mercado promissor e transparente.

Em relação ao mercado imobiliário o projeto prevê ainda que, além dos registros, serão incorporadas também as informações dos inquilinos, incluindo identidade e validade do visto, permitindo a renovação do contrato e o pagamento eletrônico dos aluguéis. Segundo o DLD, todas as transações ocorrerão por meio da rede blockchain, transformando Dubai no primeiro governo a implantar integralmente a tecnologia. O que não fica claro nos materiais oficiais divulgados, é o tipo de blockchain que será utilizada, se pública ou privada e qual a plataforma. Resta aguardar para ver.

IbreaIdeias e promessas não faltam, mas o que temos realmente de concreto? No site da IBREA | International Blockchain Real Estate Association – provavelmente a primeira entidade criada para estudos da blockchain para o mercado imobiliário, fundada em 2013, registram-se importantes trabalhos nessa direção, mesmo assim, dos 30 artigos publicados ainda não há um caso efetivo rodando em escala relevante. A primeira exceção poderá ser atribuída à Brickblock que afirma ter captado mais de um bilhão de dólares para investimentos em imóveis fracionados (quando várias pessoas investem em diferentes frações de um mesmo imóvel) baseado em contratos inteligentes sobre a plataforma do Ethereum. Segundo o seu diretor, os aportes podem ser de US$ 6.00 a US$ 6 milhões, ampliando exponencialmente a liquidez de um imóvel. Noutra ponta, as experiências com cartórios são relatadas na Suécia e em Pelotas no Brasil. No caso sueco, o que há de publicado não informa precisamente como está funcionando nem tampouco como são validados os registros. No caso brasileiro, a experiência de Pelotas é relatada com detalhes no artigo “Registro de transações imobiliárias em Blockchain no Brasil (RCPLAC-01) – Estudo de Caso 1” (Victoria Lemieux – University of British Columbia – Vancouver – Jan 2018). O artigo deixa claro que o caminho para algo concreto ainda requer muita quilometragem.

Essas constatações convergem com o relatório publicado pela Forrester Research (Dez, 2017): “Previsões 2018: Esteja preparado para enfrentar as realidades por trás da blockchain Hype. Os visionários irão perseverar, enquanto aqueles que esperam por soluções rápidas desistirão”. Logo de início o artigo registra uma constatação com a qual muitos já concordam: “Nunca tantas pessoas procuraram tanto por uma Forrestertecnologia compreendida por tão poucos”. De fato, a dificuldade na compreensão correta do potencial e dos desafios desta tecnologia, está induzindo a uma euforia que resulta em muita espuma e poucos resultados.

No âmbito prático, algumas perguntas precisam ser respondidas antes de optar por uma blockchain:

1. Será uma blockchain aberta ou pública (puro sangue) ou fechada, privada ou permissionária?
2. Como serão as validações dos blocos e qual o custo?
3. A tecnologia está madura para a minha aplicação?
4. O resultado irá conferir realmente mais segurança e transparência que uma solução convencional?
5. Faz sentido adotar uma blockchain em ambientes necessariamente controlados?
6. Se for uma blockchain privada, qual interesse moverá os participantes para garantir a integridade da rede?

Em síntese, quando se trata de uma blockchain pública, como no caso da rede Bitcoin, o seu componente game concebe, de forma genial, a vitalidade de uma rede distribuída, garantindo a força e o interesse econômico essenciais para a sua efetividade. Entretanto, quando se pensa em algo privado, mesmo em larga escala como no caso dos cartórios, a análise requer muita prudência. De tudo que se vê, depreende-se que a curva de aprendizado é mais íngreme que o imaginado. No mesmo relatório da Forrester, a pesquisadora conclui: “Regra geral: nunca, nunca vá para uma arquitetura baseada em blocos quando um banco de dados relacional fará o trabalho melhor”, (Martha Bennett, Forrester Research – Dez, 2017). Ou seja, para alguns nichos, as vantagens e a viabilidade da blockchain parecem muito claras, mas não é o que parece ocorrer em grande parte das ideias propagadas. Sem dúvida, a proposta de Dubai poderá estabelecer as razões e ser um marco importante na concretude do tema.

 

Ariano Cavalcanti de Paula